A expressão tem origem no antigo Dia da Expiação, quando o sacerdote judaico realizava um ritual com dois bodes: um era sacrificado como oferta a Deus; o outro, carregado simbolicamente com os pecados do povo, era enviado para o deserto, levando com ele as culpas de todos. O segundo ficou conhecido como o “bode expiatório” – aquele sobre o qual recaem as culpas que os outros desejam expiar.
No imobiliário português, o fenómeno é surpreendentemente semelhante. Temos uma capacidade notável de encontrar culpados perfeitos, prontos a carregar os pecados do sistema sempre que algo corre mal.
Durante anos, disseram-nos que as casas estavam caras por causa dos Vistos Gold. O argumento parecia sólido, até olharmos para os números: 12 mil casas transacionadas em onze anos. Detalhes… esgotado esse, passou-se para o regime fiscal dos residentes não habituais – 52 mil contribuintes em dezasseis anos. Outro número incapaz de ter interferência significativa no mercado, mas eficaz para manter o enredo.
O curioso é que ambos os regimes terminaram em 2023 e, no entanto, as subidas de preços mais expressivas ocorreram depois. Detalhes, claro. O problema deve ser outro bode. Talvez os estrangeiros que compram casa em Portugal – ainda que representem menos de 5% das transações do primeiro semestre deste ano, concentrados no Algarve, Comporta, Lisboa e Porto, e em segmentos de preço acima dos 650 mil euros. Mas, uma vez mais, detalhes…
E quando este argumento começa a fraquejar, surge o turismo. O alojamento local é o novo culpado oficial. Afinal, 73 mil apartamentos em todo o país – concentrados sobretudo nas zonas históricas de Lisboa e Porto – devem ser certamente a causa dos aumentos de preços, apesar dos aumentos mais significativos ocorrerem atualmente em concelhos onde o AL praticamente não existe. Os números pouco interessam, devem ser os culpados, o importante é termos um bode à mão.
Acontece que o sacrifício dos “bodes errados” saiu e poderá sair caríssimo ao País, os Vistos Gold entre 2012 e 2023 trouxeram para Portugal mais de 7.000 milhões de euros numa altura onde todo o setor da construção estava de rastos. O regime de benefícios fiscais para residentes não habituais, foi responsável pela atração de recursos humanos e talentos indispensáveis ao nosso crescimento económico, o AL foi o mecanismo de “economia orgânica” responsável pela recuperação dos bairros históricos de Lisboa, Porto e de dezenas de aldeias espalhadas nos lugares mais recônditos de Portugal, o turismo, esse representa mais de 20% do PIB nacional. Cuidado com o “bode” que sacrificam.
Até a Comissão Europeia quis participar na procissão, declarando recentemente que as casas em Portugal estão 35% sobrevalorizadas. Sobrevalorizadas relativamente a quê? Acontece que, o preço de uma casa nova resulta do preço do terreno, mais o custo da construção, mais as taxas, impostos. E sim, o resultado é muito desajustado para os rendimentos médios dos Portugueses. Os Portugueses têm rendimentos médios subvalorizados (talvez 35% ou mais) relativamente ao preço de construir uma casa que por sua vez é indissociável do valor pelo qual pode ser arrendada.
Bodes expiatórios não faltam. O que falta é o verdadeiro sacrifício: o do Estado, que tem de assumir o seu papel e garantir habitação acessível a quem precisa. Como naquele antigo ritual, talvez o primeiro bode – o que era sacrificado – tenha sido esquecido, enquanto continuamos a mandar os outros para o deserto.



