Luís Moitinho de Almeida
Luís Moitinho de Almeida
Sócio da área de Urbanismo da PLMJ

Pontas soltas e ângulos mortos na reabilitação urbana

07/11/2024

Vigora há mais de 15 anos o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU), trave-mestra legislativa das políticas públicas de reabilitação urbana. À primeira vista, deve assinalar-se o óbvio: a grande e positiva transformação que as zonas históricas das nossas cidades conheceram desde então. Contudo, nunca foi feito o correspondente e integral balanço.

Omissão tanto mais relevante, num quadro em que a labiríntica proliferação e a evolução de normas, instrumentos e incentivos, tornam hoje difícil de discernir uma visão clara e coerente para a reabilitação urbana. Perante isso, por ocasião da Semana da Reabilitação Urbana, contribui-se modestamente para a avaliação em falta, com notas tópicas que resultam da experiência prática da aplicação das leis e dos regulamentos em causa.

Começa-se, assim, com um conjunto de pontas soltas, não resolvidas pelos normadores (nacional e municipais), e que tantas vezes impedem a concretização das melhores soluções para intervir no território. O caso paradigmático é a reabilitação urbana em sentido lato, também conhecida como regeneração urbana, que não se cinge à mera recuperação “conservadora” do edificado existente e que se encontra hoje numa encruzilhada.

Sob impulso de políticas de otimização da receita fiscal, a evolução do quadro normativo foi tal que veio enquadrar a regeneração urbana como um fenómeno distinto da reabilitação urbana, banindo-a do acesso aos benefícios existentes (em especial, de natureza fiscal) e frustrando a confiança e expectativas de quem é chamado a investir no território ou a geri-lo.

Neste catálogo encontra-se também o ilustrativo pecadilho nacional da falta de regulamentação das leis: aqui, por referência à falta de concretização normativa da possibilidade de constituição de propriedade horizontal através de termo de responsabilidade subscrito por técnico legalmente habilitado para o efeito, a que nem o Simplex Urbanístico atendeu.

Alerta-se, ainda, para aquilo a que podemos chamar de ângulos mortos – situações de risco imprevisto pelos agentes da reabilitação urbana, que tantas vezes surgem no caminho crítico dos respetivos projetos. Assim se enquadram os poderes de autoridade reforçados em relação aos demais casos de intervenção do território – em especial, em matéria de expropriações, venda forçada e arrendamento forçado – e que, além de desagradáveis surpresas para quem não os tenha tido em consideração, implicam uma acrescida responsabilidade para os atores municipais, perante a disponibilidade destes meios para ativamente salvaguardar o interesse público.

Entre vários outros exemplos, também se deve destacar a dificílima transição do laissez faire, laissez passer do Regime Excecional da Reabilitação Urbana (RERU) para a regulação prevista no Regime Aplicável à Reabilitação de Edifícios ou Frações Autónomas (RAREFA), de que as obrigações de phase-in do cumprimento de regras de acessibilidades a edifícios são um dos casos mais complicados, só paliativamente resolvido pelo Simplex Urbanístico, através da proibição de apreciação de aspetos interiores dos edifícios e frações dos projetos submetidos a controlo prévio municipal.

Muito mais se poderia apontar para melhorar as políticas e instrumentos legais de reabilitação urbana, sobretudo num contexto em que devem ser mobilizados para acudir ao problema da crise no acesso à habitação, fenómeno global com contornos particularmente sensíveis no nosso país. Mas esse exercício deve ser feito no quadro de uma aturada avaliação a posteriori da experiência da aplicação do RJRU e dos demais instrumentos normativos que o complementam (e das políticas públicas em causa) para a qual devem ser mobilizados os agentes da reabilitação urbana.

Independentemente disso, e no imediato, ainda para mais num contexto de transformação já impulsionado pelo Simplex Urbanístico, não se pode descurar a qualificação dos projetos e das equipas – públicas e privadas, nas mais diversas valências (técnica, financeira e jurídica) – para evitar que ângulos mortos e pontas soltas do quadro jurídico vigente venham a ser intransponíveis obstáculos para a concretização dos projetos de reabilitação e regeneração urbanas.