Hugo Santos Ferreira
Hugo Santos Ferreira
Presidente da APPII

Annus Horribilis

17/01/2024

Recordo o discurso que a Rainha Isabel II proferiu em 1992, quatro dias após o incêndio que sucumbiu o Castelo de Windsor e depois de terminado um ano de várias crises na família real. Ora, poucos dias volvidos desde o final do ano, não posso olhar para 2023 com “particular alegria”, tal como a Rainha Isabel II olhou para aquele fatídico ano.

Na verdade, e ao fim de quase uma década de um ciclo absolutamente positivo para o setor imobiliário (2014-24), diria que 2023 foi dos anos mais desafiantes em matéria de política pública e legislativa do setor. Ainda mal reconvalescidos de uma pandemia, que nos trouxe uma crise económica, iniciámos 2023 a meio de uma guerra na Europa, que nos trouxe inflação e o consequente aumento das taxas de juro. Tudo somado à crise dos abastecimentos, das matérias-primas e, por conseguinte, a um aumento brutal do custo da construção. Já para não falar da diminuição do poder de compra e do aumento da dificuldade no acesso a financiamento.

Ora se tudo isto já não bastasse, quem não se lembra do fatídico dia 16 de fevereiro? Dia em que começaram anúncios... Diria até que o ano passado foi mais nefasto para o setor em matéria de anúncios, do que propriamente em matéria de concretização dos mesmos, isto porque a maioria das medidas anunciadas ou nunca chegaram a ver a “luz do dia”, ou não tiveram aplicação prática, ou foram muito corrigidas (e bem) na sua versão final.

Mas a verdade é que só os anúncios prejudicaram e muito (não digo “deitaram por terra”, porque julgo ser ainda reversível, mesmo que difícil) a credibilidade do País como um Estado de Direito Democrático, como um país estável e credível e, acima de tudo, como um destino de investimento, onde o capital externo é bem-vindo e faz falta. Ou não fossemos um País com escassa liquidez interna e retenção de poupança, sem a capacidade e músculo financeiro para o desenvolvimento de grandes projetos, especialmente de habitação acessível.

Começámos o ano com o anúncio atabalhoado do Pacote Mais Habitação. Este atacava tudo e todos, pondo em causa o Direito de Propriedade de mais de 73% dos portugueses, que são donos da própria casa. Mais, pôs em sobressalto não só estas pessoas, mas assustou também os mais de 350 mil proprietários (segundo dados do Census) que têm um imóvel devoluto, mas que não confiam na lei mais instável, imprevisível e cada vez mais desequilibrada do quadro legal português – lei do arrendamento – para decidirem dar-lhe algum rendimento, por exemplo no mercado do arrendamento de longa duração.

Só este anúncio (não falando sequer do próprio Pacote) maltratou ainda todos aqueles que, dedicando a sua casa a Alojamento Local, reabilitaram quase totalmente muitas das nossas cidades, da nossa economia e comércio locais (recorde-se a baixa de Lisboa ou do Porto há dez anos). Sem esta nova dinâmica que nasceu há quase uma década, não tínhamos as cidades, o comércio e a economia locais renascidos como hoje.

Mas continuámos. E como se o fim dos Vistos Gold não fosse suficiente para afastar os investidores, eis que nos deparámos, para surpresa de muitos, com o governo a apresentar, quase no término do ano, o (suposto) fim do programa dos Residentes Não Habituais. Ora olhando para os números, é de salientar que os Vistos Gold representaram 0,2% das transações imobiliárias em 2022 e menos de 2% nas Áreas Metropolitana de Lisboa e Porto. Este tipo de programas nada ter a ver com Habitação, aliás estamos a comprovar no mercado aquilo que venho dizendo: tivemos o fim deste programa e não foi por isso que houve mais habitação e mais barata, bem pelo contrário, construímos menos e naturalmente os preços subiram. Pelo que insisto: FALTA OFERTA! Programas destes eram um verdadeiro balão de oxigénio para uma economia descapitalizada, com uma carga fiscal pesada e taxas de poupança anémicas de 6,6%, onde o consumo interno não chega. Mais, o stock de investimento direto estrangeiro atingiu em 2023 níveis recorde próximos dos 174 mil milhões de euros, que corresponderam a 71% do PIB nacional. E não precisámos ou deixámos de precisar deste capital? Recordo-me sempre da célebre expressão: “país pobre com tiques de rico”.

Em suma, nada disto contribuiu para alcançar Mais Habitação a preços que os portugueses possam pagar. Mas disso nos ocuparemos, dada a relevância do tema, em próximo artigo.