Carlos Suaréz
Carlos Suaréz
Administrador da VICTORIA Seguros

Habitação: Um olhar sobre o outro lado da Raia

26/10/2022

Analisado o respetivo despacho do gabinete do ministro de infraestruturas e habitação, percebi que o referido estudo não se encontra dissociado das reformas estruturais já comentadas noutros artigos desta coluna, antes pelo contrário.

Posto isto – e, já agora, de forma absolutamente invulgar para mim – lembrei-me de olhar para o outro lado da Raia, especificamente para a mais recente tentativa daquele governo “socialista” nesta matéria: o projeto da nova Lei de Habitação, aprovado em fevereiro deste ano e ainda em discussão parlamentar com mais de oitocentas emendas ao texto original.

Mas antes de analisar as pretensões do texto legislativo, valerá a pena fazer um mínimo enquadramento da realidade do mercado espanhol da habitação social – os imóveis propriedade do Estado que se vendem ou alugam a preços controlados. Segundo diversos estudos, o parque público de habitação encontra-se ao nível mais baixo dos últimos quarenta anos (1,6% do total) e oferece menos de uma habitação social por cada cem habitantes (0,9). Em jeito de comparação, o parque público de habitação social em França ultrapassa os 15% do total e oferece 7,2 fogos por cada centenar de cidadãos.

Observada a situação desde uma perspetiva diferente, pode constatar-se que os volumes de construção de habitação protegida – imóveis desenhados e construídos de acordo com uma normativa específica, merecedores de incentivos especiais e colocados a preços inferiores ao do mercado livre – na década de 1980 elevavam-se até aos cem mil fogos anuais, ao passo que nos últimos cinco anos a média desse valor regrediu até às oito mil habitações por ano, tendo atingido o seu mínimo histórico em 2016, com menos de cinco mil unidades entregues. Um outro indicador interessante: na década entre 2007 e 2017, o país vizinho investiu €35 por habitante na proteção social através da habitação, ao tempo que a média da União Europeia se situou nos €143.

Para agravar mais um pouco o desequilíbrio estrutural, a OCDE denuncia que o parque de habitação social destinado ao aluguer apenas excede 1% do total, afirmando que os indivíduos com os rendimentos mais baixos dedicam ao pagamento da renda de habitação uma fatia superior a 40% do ordenado. É claro, na opinião dos peritos, aquele mercado precisa – para equilibrar a procura da população – de mais de um milhão de unidades de habitação pública em regime de renda a preços limitados.

Pouco surpreende, com esses antecedentes, que a motivação principal do legislador tenha sido o desenvolvimento normativo do direito constitucional a uma habitação digna e adequada – pela via do arrendamento –, “atacando a especulação, reforçando a proteção do inquilino em situação de especial vulnerabilidade nos processos de despejo” e, claro, aumentando o parque de habitação pública destinado ao aluguer de renda controlada.

Em relação à proposta de Lei propriamente dita, é consensual destacar a incorporação do conceito de mercado residencial tensionado – aquele onde o esforço financeiro para o acesso à habitação (hipoteca ou aluguer) exceda 30% do rendimento médio das famílias e/ou o preço do aluguer ou da compra tenha ultrapassado em 5% a percentagem de crescimento do IPC, no último lustro. Nesses mercados, a Administração poderá intervir, no intuito de congelar, limitar ou incentivar a descida dos preços do aluguer, durante três anos prorrogáveis. Adicionalmente, a norma prevê deduções fiscais para os pequenos proprietários e limitações à margem de manobra e preços aplicáveis dos grandes (mais de dez imóveis em propriedade).

Em aditamento – e já fora dos mercados residenciais tensionados –, o texto pretende dinamizar a colocação da habitação devoluta no mercado de arrendamento, agravando a taxa impositiva do IMI inerente a imóveis injustificadamente desocupados por mais de dois anos, promover o parque de habitação social inalienável pela via da qualificação indefinida do solo de reserva e incentivar a construção de habitação protegida destinada ao aluguer a preços controlados.

Independentemente da (ir)razoabilidade económica e fiscal das iniciativas supramencionadas e da opinião que nos mereça a sua eventual exequibilidade, a verdade é que – à luz da realidade do país vizinho – a iniciativa legislativa do Executivo não parece descabida, quando mais não seja para provocar um debate transversal à volta duma clara fragilidade estrutural do mercado de arrendamento.

Claro que o importante será o que os nossos governantes decidam fazer aqui…