Cláudia Monteiro e Nuno Baptista
Cláudia Monteiro e Nuno Baptista
Gestora de projeto na Direção de Edifícios e Eficiência de Recursos; Coordenador do Sistema de Certificação Energética dos Edifícios, ADENE

A "nova" diretiva de desempenho energético dos edifícios e os desafios que traz para Portugal

03/05/2023

A revisão em curso da diretiva de desempenho energético dos edifícios (EPBD) é disso um bom exemplo, onde se mantém a exigência para os edifícios novos, mas agora com uma tónica muito forte ao nível da reabilitação. Nela surgem alguns conceitos novos ou reformulados (e mais exigentes) como é o caso dos edifícios de emissões zero ou da introdução de um indicador que quantifica as contribuições potenciais de aquecimento global de um edifício ao longo do seu ciclo de vida. Em resumo, pretende-se que os edifícios não causem nenhuma emissão local proveniente de combustíveis fósseis e que a longo prazo reduzam as suas emissões incorporadas (ex. materiais usados). Adicionalmente, foram ainda definidos padrões mínimos de desempenho energético já para “amanhã”, que estabelecem classes mínimas de desempenho energético e deve ser ainda prevista a instalação de energia renovável a partir de energia solar nos edifícios (se viável).

De acordo com a Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios (ELPRE) e em linha com o definido igualmente no Roteiro para a Neutralidade Carbónica e no Plano Nacional de Energia e Clima, Portugal tem metas ambiciosas para a descarbonização, e os edifícios têm aqui um papel fundamental, com montantes significativos de investimento para que possam ser renovados. São necessários 150 mil milhões de euros até 2050 para transformar os edifícios e a questão que se coloca, considerando o atual contexto económico, é se 1) as famílias têm capacidade para pagar a reabilitação (preferencialmente energética) das suas casas, ou de se endividar ainda mais para o efeito, e se 2) existe capacidade financeira da banca para participar neste processo.

Refletindo no primeiro ponto, sabemos que quase 20% da população vive em pobreza energética e 16% em pobreza económica, o que torna urgente que sejam adotadas medidas de suficiência e eficiência energética que permita a estas famílias a redução dos consumos de energia e o acesso a condições dignas de habitabilidade (sim, porque o conforto térmico tem de deixar de ser visto como um "luxo" já que tem implicações na saúde e bem-estar dos seus ocupantes). No entanto, estas mesmas famílias não têm capacidade financeira para assumir as despesas associadas à reabilitação dos seus edifícios, nem tão pouco a capacidade técnica para saberem escolher quais as melhores soluções em termos de custo-benefício, o que os deixa mais vulneráveis quando os custos com energia aumentam, especialmente aqueles que vivem em edifícios com pior desempenho energético. Nesse sentido, a Comissão Europeia pretende ajudar a mobilizar o dinheiro necessário para suportar o investimento inicial de forma a implementar os padrões mínimos de desempenho energético nos edifícios. Mas embora estas sejam boas notícias, também significa que temos de garantir a implementação dos fundos e apoio suficientes de forma efetiva para fornecer financiamento a nível nacional e ajudar a alavancar o investimento privado para que a reabilitação seja efetivamente uma realidade.

Nesse aspeto, a EPBD traz um conjunto de diretrizes que Portugal terá de transpor como é o caso dos Planos Nacionais para a Reabilitação Energética (uma espécie de ELPRE 2.0). No entanto há aqui uma importante alteração de "estratégia" para "plano" que não se quer que seja só uma questão de semântica, sendo expectável que estes planos permitam assegurar uma utilização coerente dos fundos identificando as áreas-chave e criando os instrumentos financeiros mais adequados a cada país. Para permitir uma combinação eficiente entre o financiamento privado e público a EPBD prevê mecanismos de apoio técnico e ferramentas de aconselhamento ao cidadão para a renovação profunda dos edifícios. Neste aspeto também o papel do certificado energético é reforçado, sendo expectável que estes se tornem mais claros, úteis e atrativos, com informação fácil de entender e que beneficie os proprietários, investidores, e autoridades públicas. Algumas das alterações previstas passam, por exemplo, pela uniformização das classes energéticas de "A" a "G" em toda a União Europeia e no acesso público à base de dados de forma que seja facilitado o trabalho entre autoridades públicas e instituições financeiras.

Relativamente ao segundo ponto e ao papel da banca neste processo, sabemos que novos padrões de sustentabilidade irão ser introduzidos pela taxonomia europeia e pela avaliação das práticas de negócio e desempenho das organizações designadas por ESG (Environmental, Social and Governance). As obrigações e exigências destes dois mecanismos fazem a banca olhar para os créditos já concedidos (e também para os novos) sob um outro prisma, isto porque mais de 80% dos edifícios apresentam classes de desempenho energético igual a "C" ou pior, e pensando que na sua quase totalidade estarão associados a créditos bancários, isso acaba por condicionar o rating do banco. Nesse sentido é expectável uma reformulação nos padrões de portfólio dos ativos dos bancos associadas às hipotecas, e que estes sejam um mecanismo que sirva para incentivar os credores e potenciais clientes a melhorar o desempenho energético dos seus edifícios. No entanto, parecem não existir ainda desenhos atrativos de financiamento à eficiência energética, como por exemplo a taxa de juro a 0% ao consumidor ou a combinação de fundos privados, fundos públicos e incentivos fiscais para a generalidade dos proprietários privados, para reabilitarem as suas casas.

Na procura de algumas respostas a estas e outras questões, a ADENE promoveu a conferência “Pensar a Energia”, de onde resultaram algumas reflexões importantes. Um tema incontornável foi naturalmente o dilema no acesso à habitação e do alerta deixado por alguns especialistas da ausência da componente sustentável no pacote de habitação atualmente a ser negociado, da necessidade de aumentar a exigência desta componente ao nível do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), ou da especulação imobiliária associada aos condomínios de luxo e dos seus “extras verdes” que são uma alavanca que está a empolar ainda mais o preço das casas. Foram levantadas questões importantes como "Quem paga a sustentabilidade na habitação acessível?" e “Que mecanismos temos de criar para promover a reabilitação nas classes médias e vulneráveis?” Os representantes da banca mostraram-se otimistas referindo que apenas 12% das famílias têm taxas de esforço superior a 36% e que os montantes médios de endividamento estão abaixo dos 70.000€, não estimando particulares dificuldades para as famílias de classe média no acesso a crédito para a renovação dos edifícios e garantindo que o setor bancário tem solidez para poder fazer face aos montantes estimados na ELPRE. Sabemos que a reabilitação gera em média um volume anual de negócios na ordem dos 6 mil milhões de euros, os quais têm que ser alavancados para acomodar as necessidades financeiras estimadas até 2050 com vista a atingir um parque descarbonizado. Nesse caminho há que também capacitar, modernizar e continuar a combater a informalidade do sector da construção e melhorar o licenciamento urbanístico promovendo o diálogo entre os intervenientes, governo e entidades públicas.

Finalmente, e porque a "nova" diretiva dos edifícios não é só padrões mínimos de desempenho e financiamento, é ainda feita a alusão à iniciativa da Nova Bauhaus que lança uma oportunidade inequívoca e desafiante de pensar a sustentabilidade dos edifícios a par do seu impacto social e estético, numa abordagem participativa e ascendente. Portugal tem de se preparar para estabelecer roteiros industriais nacionais para aumentar a disponibilidade de elementos de construção pré-fabricados adaptáveis localmente para a reabilitação de edifícios que deem resposta a diversas funções, incluindo a componente estética, a produção de energia e de infraestruturas verdes, a promoção da biodiversidade, a gestão da água, e a acessibilidade e mobilidade. Uma reabilitação e reutilização adaptativa em detrimento da demolição e da construção nova irá obrigar a uma readaptação da indústria da construção, mas é sem dúvida uma necessidade, e o Estado poderá ter aqui um papel relevante e dar o exemplo ao incrementar o uso da construção modular.

Quando a política é ambiciosa, também temos os setores estratégicos a queixarem-se de que somos irrealistas e de que não conseguiremos atingir as metas, sem que muito façam para alterarem esses mesmo status quo (e são eles a força motriz desta mudança, disso não tenhamos dúvidas!). Ou seja, temos aqui dois caminhos: ou continuamos a lamentar-nos da ambição com que nos comprometemos ou passamos a olhar para o que realmente importa: as metas são exigentes e ambiciosas, sim, mas compreendemos que também são importantes e que podem ser uma oportunidade única para nos tirarem da nossa zona de conforto e tornar-nos mais eficientes, competitivos, resilientes e sustentáveis. Temos de para isso trabalhar em conjunto (cidadãos, setores estratégicos, decisores políticos, etc.) para atingirmos essas mesmas metas e sermos proativos na sua concretização porque se nós não acreditarmos que somos capazes, ninguém acreditará por nós.

A diretiva terá de ser brevemente transposta e as estratégias e os planos revistos. Aproveitemos esta oportunidade para aprender com os erros do passado e evoluir no sentido certo porque, tic-tac, o relógio não para.