Carlos Suaréz
Carlos Suaréz
Administrador da VICTORIA Seguros

Programa Nacional de Habitação. É, ou não é, para ficar atordoado?

30/11/2022

Nestas últimas semanas, temos vindo a padecer de uma série de manifestações dos nossos governantes que, para não ser mais cáustico, podíamos designar como alucinantes. Deixando de lado o já muito discutido assunto da alteração de rumo, em relação ao programa de vistos gold para a obtenção de autorização de residência em Portugal (declarações para desvairar, mesmo), o comunicado que mais me chamou a atenção foi o anúncio, com rufar de tambores, da aprovação, pelo conselho de ministros, duma proposta de lei inerente ao Programa Nacional de Habitação (PNH).

Claro que eu não tive oportunidade de conhecer o texto da iniciativa legislativa, mas pelo que consegui perceber da conferência de imprensa realizada após o Conselho de Ministros, de 3 de novembro, e da leitura do documento de apresentação do mesmo (www.portugal.gov.pt), o diploma a submeter à Assembleia da República – composto por 22 medidas e uma dotação orçamental de quase 2,8mil milhões de euros, até 2026 – parece querer responder a dois desafios.

Por um lado, garantir que todos os agregados (famílias carenciadas e famílias da classe média) têm acesso a uma habitação digna e adequada aos seus rendimentos e à sua dimensão;

por outro, garantir que, a médio prazo, o peso da oferta pública no mercado habitacional é capaz de dar resposta às necessidades e contribuir para a regulação do mercado.

É, ou não é, para ficar atordoado?

Apontar para o aumento substancial do parque público de habitação, como forma de resolver o problema de acesso da população mais necessitada a uma habitação digna, aparentemente sem grande recurso à iniciativa privada – menciona-se, apenas, um conjunto de incentivos à oferta privada e social de arrendamento a custos acessíveis e uma eventual redução da fiscalidade em determinados pressupostos de habitação a custos controlados – nem à harmonização de todos os outros elementos com impacto direto na conformação do nosso vigente mercado habitacional (sobejamente conhecidos pelo leitor atente) parece-me, simplesmente, ilusório. Compreendo, sim, os objetivos, prioridades e medidas mais relevantes em matéria de política de habitação, mas não entendo a decisão de alargar o parque público de habitação, a não ser para comparar menos mal com outros países europeus…

Se em relação ao primeiro desafio já tenho dificuldades de discernimento, em relação ao segundo (garantir que, a médio prazo, o peso da oferta pública no mercado habitacional é capaz de dar resposta às necessidades e contribuir para a regulação do mercado) encontro-me totalmente desnorteado. Num esforço de assimilação, eu até poderia perceber o desejo transmitido de atingir a meta futura dos 5% de habitação pública e habitação apoiada por políticas públicas, se tivesse tino suficiente para encaixar a segunda parte (habitação apoiada por políticas públicas), porque, aí sim, já me parece existir muito mais campo para uma discussão transversal e profícua com a totalidade dos operadores do mercado…

Dito doutra forma, devo ter percebido mal algumas coisas, porque, independentemente do PNH poder vir a ser, como se intitula, um instrumento de política de habitação consistente, integrada, perene e histórica, só quem estiver muito distraído poderá acreditar que o aumento do peso do parque público de habitação – por si só e sem adotar medidas bem mais contundentes, nomeadamente no que diz respeito à incorporação dos operadores privados no desenvolvimento da oferta global de habitação e aos verdadeiros travões de contexto a esse desenvolvimento – virá a ser a resposta que o nosso mercado habitacional precisa para garantir o acesso das famílias (relembro, carenciadas e de classe média) a uma residência digna e a preços compatíveis com os seus rendimentos. Itero que o meu raciocínio se baseia, apenas, na audição e leitura do material ao meu dispor, mas tenho a certeza de que me sentiria menos delirante se o anúncio da aprovação do PNH tivesse incorporado um exemplo de comparação, isto é, um país da Europa onde os problemas estruturais do acesso à habitação das referidas famílias se tenham resolvido, apenas, ou principalmente, pela via do robustecimento do parque público de habitação.

Atenção que eu não estou a pôr em causa o propósito (inverter por completo o sentido político que durante décadas foi dado à questão da habitação), a boa intenção (apostar, com a ajuda de verbas do PRR, num “programa gigantesco” de construção de novas habitações destinadas às famílias carenciadas e da classe média) nem alguns benefícios da iniciativa (a definir). O que estou a dizer é que – salvo no caso de existir uma ainda inexplicada e fabulosa capacidade de inovação nos instrumentos futuros a aplicar – não consigo ver a ligação efetiva entre o pretendido (acesso dos portugueses a uma habitação condicente com as suas capacidades financeiras) e o anunciado (através do alargamento do parque público de habitação), nomeadamente quando não se conta com o grosso do setor privado para lá chegar.

Enfim, há muito que fiquei sem espaço editorial, mas não me digam que tudo o anterior não é para uma pessoa se desorientar…