Abel Barbosa de Mendonça
Abel Barbosa de Mendonça
consultor sénior na área de Imobiliário e Turismo da PLMJ.

Reabilitar não é restaurar

11/11/2022

O setor da construção e do imobiliário é responsável por cerca de 40% das emissões mundiais dos gases com efeito de estufa (GEE).

Para reverter a situação tem-se vindo a produzir legislação a promover a redução drástica da emissão de GEE no sector imobiliário, em linha com os objetivos mais ambiciosos do Acordo de Paris. Pretende-se atingir a neutralidade carbónica em 2050 e a redução em 55% das emissões face aos registos de 1990 já em 2030.

A União Europeia (UE) assume a liderança legislativa nos domínios da descarbonização e transição energética, o que tem incutido uma dinâmica exigente de acompanhar. É um dos maiores desafios ao sector e que creio apenas comparável com a recuperação pós-Grande Depressão de 1929.

Da legislação já produzida pela UE, destaca-se o Regulamento Taxonomia e respetivo Regulamento Delegado 2021/2139 da Comissão que – em traços gerais - vem (a) identificar o sector imobiliário como atividade hiper-carbónica carecendo de transição urgente e (b) estabelecer os critérios para determinar em que condições uma certa atividade é qualificada como contribuindo para a mitigação das alterações climáticas; vulgo, se é verde ou não. Associada a esta classificação vem um conjunto de obrigações de reporte que, embora ainda apenas aplicável às entidades financeiras, permitirá monitorizar a atividade verde das empresas e, consequentemente, contribuir para a seleção mais criteriosa de verdadeiro investimento verde. Outras iniciativas legislativas têm vindo a ser encabeçadas pela UE, nomeadamente o Pacote Ecológico Europeu e o Pacote “Energia Limpa Para Todos os Europeus”.

É notável o contributo da UE no domínio da descarbonização e transição energética. Contudo, há dois dados essenciais relativamente aos quais o contributo da UE ainda parece ser deficitário. O betão representa 7% das emissões mundiais de GEE e o ferro e o aço, conjuntamente considerados, 11%. Ilustrando: as emissões de GEE na produção de betão correspondem ao triplo das emissões de todo o sector da aviação e as emissões libertadas pela indústria do ferro são superiores às emissões da UE ou da Índia – apenas os EUA e a China as superam.

Intuitivamente se percebe que dificilmente alcançaremos os objetivos 2030 e 2050 sem a redução hercúlea dos GEE resultantes da produção daquelas matérias ou caso não se incentive urgentemente a utilização de matérias alternativas. Sem isso, nunca sairemos do escopo das medidas paliativas.

No encalce do normativo europeu, Portugal tem aderido às políticas de descarbonização e transição energética tendo aprovado (i) em 2019 o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 (RNC 2050), publicado pela Resolução do CM n.º 107/2019 e (ii) em 2020 o Plano Nacional de Energia e Clima 2030 (PNEC 2030) pela Resolução do CM n.º 53/2020.

O RNC 2050 vem estabelecer uma trajetória de redução dos GEE entre 45% e 55% até 2030, entre 65% e 75% até 2040 e entre 85% e 90% até 2050 face aos valores registados em 2005 (em linha com o Acordo de Paris).

O PNEC 2030, no que se refere ao caso específico do sector, já se encontra parcialmente materializado no Decreto-lei 101-D/2020 e no Plano de Longo Prazo de Renovação dos Edifícios aprovado pela Resolução do CM n.º 8-A/2021. O conjunto destes diplomas visa, a final, promover a conversão dos edifícios existentes num parque imobiliário descarbonizado e de balanço energético quase nulo: os NZEB (“nearly zero energy buildings”).

O impacto da política de descarbonização no mercado da reabilitação

Os objetivos de descarbonização e eficiência energética conheceram nos tempos mais recentes uma evolução ímpar, não só em resultado da legislação emanada, mas, sobretudo, da necessidade sentida pelos investidores mais sofisticados em conceder ciclos de vida mais longos aos seus ativos.

O caso é-nos particularmente sensível relativamente à estratégia de reabilitação que adotámos no início da década passada. Até agora, a certificação da eficiência energética e o cumprimento das regras de comportamento térmico e climatização pareciam suficientes para endereçar toda a temática energética. Contudo, volvidos poucos anos, corremos o risco de estar a assistir passivamente à transformação do nosso edificado reabilitado mais recente e mais valioso num produto obsoleto cujo ciclo de vida poderá encurtar repentinamente.

As preocupações de sustentabilidade na reabilitação limitaram-se à eficiência energética fazendo depender os incentivos fiscais dessa melhoria. Ficaram por conceder benefícios mais atrativos àqueles que procurassem implementar métodos construtivos que promovessem a descarbonização em toda a cadeia de valor.

A Europa tem dados sinais evidentes de que, no futuro, será privilegiado o acesso a financiamento para investimento verde, aí incluída a aquisição de edificado verde. Nessa altura, o mercado ditará a valorização do imobiliário verde face ao restante. Este último a liderar atualmente a valorização por m2. Parece existir um potencial latente de desvalorização do parque reabilitado cuja tendência só poderá ser invertida caso sejam adotadas medidas no imediato.

Poderemos também ter perdido a oportunidade de explorar e implementar conceitos mais avançados de desenho e conceção da cidade, como o policentrismo, o crono-urbanismo ou mesmo as cidades digitais.

Veja-se as “cidades 15 minutos” idealizadas pelo franco-colombiano Carlos Moreno. Cidades transformadas para que todos os residentes tenham acesso a equipamentos, comércio e serviços essenciais até uma distância a pé de 15 minutos - modelo já adotado por Paris, sob o slogan “big bang de proximidade”.

Temos pela frente um novo processo de reabilitação do produto reabilitado para que este continue a preservar o seu valor de mercado no longo prazo. Uma espécie de reabilitação 2.0. Será desafiante incentivar os atuais proprietários para, volvido tão curto espaço tempo, realizarem novos investimentos de modernização dos seus ativos. Contribui para o desafio o deficitário funcionamento dos condomínios e a falta de legislação a evitá-lo.

É inegável que Lisboa e Porto são hoje melhores cidades. Fica apenas uma certa frustração por termos desperdiçado a oportunidade de não ter ido mais além na estratégia de reabilitação que, na sua essência, se limitou a um processo de restauro do edificado. Copiámos o que outras cidades europeias já haviam feito há 50 anos! Foi pena. Urge repensar a estratégia.